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A evolução histórica dos sistemas processuais e a regência do sistema acusatório no PL 156/2009

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    Serra Oliveira Advogados
  • 30 de nov. de 2010
  • 7 min de leitura

Atualizado: 7 de mai. de 2020

Citação: OLIVEIRA, Rafael Serra. A evolução histórica dos sistemas processuais e a regência do sistema acusatório no projeto 156/2009-PLS. Boletim IBCCRIM, n. 216, p. 8-9, São Paulo: nov., 2010.



Os sistemas acusatório e inquisitório puros nasceram em ambientes históricos distintos, cada qual se adequando às necessidades das castas dominantes.

Historicamente, ambos os sistemas remontam ao Direito grego. O modelo processual acusatório consagrado na democracia ateniense dos séculos V e IV a.C - fundado na divisão entre as atividades de acusar e julgar, na publicidade e oralidade dos atos e no contraditório -, só vigorou após as reformas legislativas promovidas por Sólon por volta de 640 a.C.. Anteriormente, “o processo estava organizado sob um modelo inquisitivo, onde os magistrados eram encarregados de iniciar, instruir e julgar o processo”.[1]

Por sua vez, o Direito romano, em razão da sucessão dos sistemas políticos monárquico, republicano e imperial, caracterizou-se pela alternância entre os sistemas acusatório e inquisitório, pois, como bem frisou Goldschmidt, “Los principios de la política procesal de una nación no son otra cosa que segmentos de su política estatal en general”.[2]

Os sistemas processuais na antiga Roma foram se alternando paulatinamente. Durante a Monarquia (753 a.C. a 509 a.C.) o poder estava concentrado nas mãos do Rei.

Segundo Maier,[3] somente ao final desse período deu-se início a uma pequena descentralização: magistrados (duumviri) eram indicados e substituíam o monarca para, em seu nome, levarem a cabo uma instrução sumária (cognitio) e emitirem o veredicto final. No entanto, tratava-se ainda de uma forma primária do sistema inquisitório.

A mudança no sistema processual adotado na monarquia começou a tomar corpo quando, já pela influência de ares republicanos, permitiu-se “la facultad de alzarse contra la decisión del rey o los magistrados, conocida como provocatio ad populum, derecho que competía, en principio, a los ciudadanos varones para provocar la reunión de la Asamblea popular a fin de evitar las consecuencias perjudiciales de la decisión del inquisidor público”.[4]

Após a transição para a república (509 a.C.-27 a.C.), as reformas se consolidaram com a edição de leis[5] que conservaram a possibilidade de intervenção da assembleia popular, transferindo lentamente o poder de julgar dos magistrados - os quais ainda exerciam todas atividades processuais - para o povo, que, por meio dos Tribunais Populares (comicios), podia anular as condenações.

A evolução do Direito romano em direção ao sistema acusatório se completou com a redução do papel estatal à função jurisdicional em sentido estrito, enquanto a acusação era exercida por um membro voluntário da coletividade (accusatio).

Esse processo histórico culminou na consagração do sistema acusatório estruturado no “proceso romano de la Alta República, cuyas notas esenciales fueron las de acusación realizada por persona distinta al juez, publicidad de todo el procedimiento, oralidad, paridad absoluta entre los derechos del acusador y del imputado, aportación de pruebas a cargo de las partes y libertad personal del acusado”.[6]

Ocorre que, com nova alteração do sistema político, desta vez para o Império (27 a.C.- 476 d.C.), a intervenção popular no processo foi sendo gradualmente suprimida até a retomada pelo Estado das funções de acusar e julgar (cognitio extra ordinem).

A partir daí, os magistrados passaram a iniciar de ofício as acusações, instruir e julgar o processo. Os atos eram escritos e secretos. Como bem aponta Vélez Mariconde,[7] essa foi a semente do sistema inquisitório que desabrochou no século XIII com o Direito Canônico.

Durante a Idade Média (476 a 1453) vigorou o direito local ditado pelos Senhores Feudais. Enquanto isso, a Igreja manteve sua estrutura hierarquizada e centralizada, fortalecendo-se pela detenção do poder econômico (proprietária de terras) e espiritual (intermediária entre o homem e Deus), bem como pelo monopólio do conhecimento desenvolvido nas recém-criadas Universidades, locais em que, entre outras coisas, desenvolvia-se o estudo do Direito Romano Imperial.

O fim da Idade Média foi marcado pelas disputas entre Reis e Senhores Feudais que culminaram com o retorno do poder às mãos dos Monarcas, os quais, embora vitoriosos, saíram enfraquecidos e foram obrigados a firmar aliança com a estruturada Igreja Católica.

Desse modo, o poder eclesiástico se difundiu por toda Europa Continental - desenvolvia-se na Inglaterra o Common Law - e, consequentemente, o Direito Canônico, composto pelas ideias embrionárias do sistema inquisitivo.

Aos poucos, então, foi-se outorgando “competencia a la jurisdicción eclesiástica para juzgar ataques directos contra la fe (por ej., herejía), pero se terminó extendiendo esa característica a una gran cantidad de infracciones, circunstancia que le abrió la posibilidad de juzgar a cualquier infractor que aparecía como contrario a los intereses de la Iglesia”.[8]

Nesse contexto, para manter seu domínio, a Igreja passou a perseguir os hereges - todos que se opunham, de qualquer forma, ao seu poder - e, para isso, reuniu sua cúpula no IV Concílio de Latrão (1215) e fez opção pelo uso da força. A isso, seguiu-se a Bula de Gregório IX (Ex Excomuniamos, em 1231) e a Bula de Inocêncio IV (Ad Extirpanda), instituindo de vez o sistema inquisitório fundado, segundo Leone,[9] na disparidade de poderes entre juiz-acusador e acusado, na vitaliciedade do juiz, na aquisição e valoração das provas pelo magistrado independente da atuação das partes e no processo escrito e secreto.

Os ideais iluministas (séc. XIII) e a Revolução Francesa (1789) abrandaram um pouco as técnicas processuais da inquisição, adotando-se o que se chama de sistema misto. O Code d´Instuction Criminalle de Napoleão (1808) foi o primeiro a dividir a persecução em fase pré-processual e processual - com juízes diferentes em cada uma delas - e voltou a distinguir acusador e julgador.

No entanto, o sistema inquisitório continuava predominante, pois ao magistrado era facultado interferir ilimitadamente na atividade probatória. Não fosse assim, não serviria à tirania de Napoleão.

Tal sistema misto predominantemente inquisitivo também serviu de sustentação para os regimes ditatoriais latino-americanos do século XX, pois “il regime politico totalitario trova nel sistema processuale inquisitorio lo strumento di potere più efficace”.[10]

No Brasil não foi diferente. O Código de Processo Penal de 1941, editado sob a ditadura do Estado Novo, como não poderia deixar de ser, manteve a predominância do sistema inquisitório ao atribuir ao juiz a prática de atos característicos da acusação como a decretação de ofício da prisão preventiva (artigo 311), da busca e apreensão (artigo 242), do sequestro (artigo 127); além da participação ativa na instrução para realizar praticamente qualquer diligência (artigo 156, I e II), inclusive substituir a acusação para ouvir testemunhas não arroladas (artigo 209).

Ocorre que, após a promulgação da Constituição de 1988, o ordenamento jurídico pátrio não comporta mais os ranços do sistema inquisitório. As bases do sistema processual proposto pela Carta Magna estão calcadas nos princípios acusatórios da separação entre acusador e julgador, exercício da ação penal privativa do Ministério Público, imparcialidade e livre convencimento do juiz, motivação das decisões, ampla defesa, contraditório, oralidade e publicidade dos atos judiciais, entre outros.

Apesar de compreendermos que “a interiorização dos postulados constitucionais é sempre lenta”,[11] a absorção dos preceitos do sistema acusatório já se completou. É o que se percebe pelas recentes manifestações dos Tribunais pátrios que impõem a vinculação do julgador ao pedido de absolvição feito em alegações finais pelo Ministério Público[12] e impossibilitam a produção de prova oral pelo juiz nas hipóteses em que a acusação não arrolou testemunha.[13]

Imbuída desse espírito, a comissão de notáveis que elaborou o projeto do novo Código norteou seus trabalhos na busca de um processo democrático regido pelo sistema acusatório “que, sem qualquer exagero, (pode) ser considerado sua coluna vertebral”.[14]

São perceptíveis, no corpo do Projeto 156/2009-PLS, algumas mudanças com relação ao modelo atual. Logo de início, o artigo 4º indica expressamente que “o processo

penal terá estrutura acusatória”, vedando ao juiz a “substituição da atuação probatória do órgão da acusação”. Se assim aprovado, de uma vez por todas, a iniciativa probatória estará a cargo das partes.

Além disso, surge o juiz de garantias na fase de investigação, cuja limitada e importante função é o “controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais...” (artigo 15).

Na fase processual, por sua vez, um juiz diferente do de garantias possui atuação apenas complementar à das partes na instrução, seja no esclarecimento de dúvida sobre prova produzida (artigo 162 e parágrafo único), seja na inquirição de testemunhas (artigo 175, parágrafo único). A atuação decisiva do magistrado é reservada à justa e imparcial prestação jurisdicional.

Lógico que podemos ir além e, por exemplo, impedir que o juiz condene contra o pedido do MP (possibilidade prevista no artigo 409 do PLS). E é esse o desafio que a edição do novo Código de Processo Penal impõe ao legislador: a necessidade de seguir o fluxo histórico/evolutivo e os ditames constitucionais para romper as amarras seculares do sistema inquisitório e instituir o processo democrático indicado pela comissão de notáveis sob a regência do sistema acusatório.

Conclui-se, então, que cabe ao legislador cumprir sua função de adequar as leis à Constituição para garantir ao réu um processo regido pelo sistema acusatório. O investigado deve ser um sujeito de direitos, pois, caso contrário, não vamos evoluir, manteremos o sistema inquisitório no qual o “réu vira um pecador, logo, detentor de uma ‘verdade’ a ser extraída”.[15]


Notas: [1] ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. Curitiba: Juruá, 2008. p. 51. [2] GOLDSCHMIDT, James. Problemas jurídicos y políticos del proceso penal. Barcelona: Bosch, 1935. p. 67.

[3] MAIER, Julio B. J. Derecho procesal penal: I. fundamentos. 2. ed. Buenos Aires: Editores Del Puerto, 2004. p. 274-275.

[4] MAIER, Julio B. J. ob. cit. p. 275.

[5] Lei de Valério Publícola, Lei das XII Tábuas, Lei Pórcia e Lei de Caio.

[6] SENDRA, Vicente Gimeno. Derecho procesal penal. 2. ed. Madri: Colex, 2007. p. 95. [7] MARICONDE, Alfredo Vélez. Derecho procesal penal. t. I. 3. ed. Córdoba: Lerner, 1986. p. 52. [8] MAIER, Julio B. J. ob. cit. p. 291. [9] LEONE, Giovanni. Tratado e derecho procesal penal. t. I. Buenos Aires: Ediciones Juridicas EuropaAmerica, 1963. p. 24. [10] TONINI. Paolo. Manuale di procedura penale. 9. ed. Milano: Giuffrè, 2008. p. 11. [11] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. v. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 76. [12] TJMG, Ap. 1.0625.07.073217-1/001, 5ª Câm. Crim, Rel. Des. Alexandre Victor de Carvalho, j. 29.03.2010, DJ 19.04.2010. [13] STJ, HC 143.889, 6ª T., Rel. Min. Nilson Naves, DJe 21.06.2010. [14] ANDRADE, Mauro Fonseca. O sistema acusatório proposto no projeto de novo codex penal adjetivo. In: Revista de Informação Legislativa, Ano 46, nº 183, jul./set. 2009, p. 168. [15] COUTINHO, Jacinto Nélson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. In: Revista de Informação Legislativa, Ano 46, nº 183, jul./set. 2009, p. 105.

 
 
 

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