O titubeante posicionamento do STF e a incontestável necessidade de fundamentar-se a decisão de r...
- Serra Oliveira Advogados

- 31 de out. de 2018
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Citação: OLIVEIRA, Rafael Serra. O titubeante posicionamento do supremo tribunal federal e a incontestável necessidade de fundamentar-se a decisão de recebimento da denúncia. Boletim IBCCRIM, n. 222, p. 14, São Paulo: mai., 2011.
Apesar de sua relevância, a fundamentação da decisão de recebimento da denúncia[1] é tema debatido superficialmente nos Tribunais pátrios, fato que traz enorme discrepância entre os julgados que enfrentam a questão. Prova disso são os dois últimos acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal sobre o tema, ambos julgados à unanimidade pela 2ª Turma em 2010, mas com decisões diametralmente opostas, o que explicita a desarmonia no enfrentamento da matéria.
No julgamento do HC84.919/SP, a Suprema Corte determinou a anulação da ação penal pela não motivação da decisão de recebimento da denúncia, que de “tão curta, sem nenhuma referência às defesas apresentadas, a decisão contaminou-se de nulidade, absoluta, ante do disposto no art. 93, IX, da Constituição da República”.[2]
Em sentido contrário, no julgamento do HC 95.354/SC, o Pretório Excelso, citando precedentes do Tribunal, denegou a ordem por entender que “o despacho que recebe a denúncia ou a queixa, embora tenha também conteúdo decisório, não se encarta no conceito de ‘decisão’, como previsto no art. 93, IX, da Constituição, não sendo exigida a sua fundamentação”.[3]
Por mais que se tente sustentar posição diversa, por sua importância e gravames que traz ao cidadão, a decisão que coloca o investigado no banco dos réus para enfrentar todos os constrangimentos – ainda que legais – e misérias do processo penal não pode prescindir de motivação.
A tese segundo a qual a fundamentação das decisões de recebimento de denúncia poderia ser sintética, já era há muito rechaçada pela doutrina e jurisprudência, que de longa data, atentas ao proclamo constitucional do art. 93, IX, não a enxergavam como mero “despacho de expediente”.
Em julgamento histórico que se deu no Tribunal Pleno do STF em 1973, o Ministro Rodrigues Alckmin iniciou a dissidência, sendo acompanhado pela maioria dos demais Ministros, para asseverar que “o magistrado, ao apreciar a denúncia, para recebê-la ou rejeitá-la, ajuíza (embora implicitamente) da admissibilidade da imputação. É decisão após cognição liminar e necessariamente incompleta, para afirmar existentes pressupostos e, mais causa ‘justa’ para a ação penal. O despacho não é, portanto, de mero expediente”.[4]
A melhor doutrina esposa do mesmo entendimento, por todos, Antonio Magalhães Gomes Filho ensina que “não é possível continuar a entender-se que o provimento judicial que recebe a denúncia ou a queixa seja um mero despacho de expediente, sem carga decisória, que dispensaria a motivação reclamada pelo texto constitucional; trata-se, com efeito, de uma decisão que não pode deixar de ser fundamentada, o que, aliás, vem sendo ressaltado sem hesitações pela doutrina”.[5]
Percebe-se que receber uma acusação é algo sério demais para não exigir adequada e específica fundamentação, notadamente à vista dos inerentes riscos da persecução penal. É dizer, a formação da relação processual penal, “por representar significativo gravame ao status dignitatis, deve, sim, ser motivada. Tal decorre, mesmo, para que o réu possa compreender o processo mental pelo qual passou o magistrado ao identificar a justa causa para a sujeição do acusado à persecutio criminis in judicio”.[6]
E se o tema ainda suscitava discussões que serviam de sustentação para decisões que negavam a aplicabilidade do art. 93, IX, da CF, elas foram definitivamente dirimidas com o advento da Lei 11.719/08. Isso porque, como assentou o Ministro Cezar Peluso ao tratar de crime praticado por funcionário público, “não faria nenhum sentido prescrever que a defesa apresente alegações prévias ao juízo de admissibilidade, (...) para depois escusar o juiz de analisá-las na decisão que dar início à ação penal”.[7]
A alteração legislativa impôs ao juiz que, da análise da denúncia e de sua resposta, decida ser ou não o caso de rejeição ou absolvição sumária, pronunciando-se sobre as alegações defensivas de mérito (arts. 395 e 397 do CPP).
Se decorre da letra e da finalidade indiscutível da lei que o Magistrado deve analisar se o caso é de rejeição da inicial e, para isso, debruçar-se sobre as teses defensivas com o desígnio de, se o caso, absolver sumariamente o imputado, não há mais como se afastar a aplicabilidade da determinação constitucional entabulada no art. 93, IX.
Como ensina Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró, a nova sistemática processual exige “um duplo juízo negativo como condição para o recebimento da denúncia ou queixa. Tais questões, portanto, terão de ser decididas pelo juiz, que deverá, em decisão motivada, indicar, com base nos elementos do inquérito policial, a presença das condições da ação, da justa causa e, caso alegado na resposta, a inocorrência de absolvição sumária invocada pela defesa”.[8]
Em outras palavras: o que a lei processual previu foi, exatamente, que a decisão fosse proferida na fase da análise das matérias defensivas e que, efetivamente, tal decisão analisasse o mérito da causa no estágio em que o feito se encontra.
Ao analisar o tema com os olhos de hoje, Aury Lopes Jr. compartilha do entendimento aqui esposado ao afirmar ser indispensável a fundamentação do recebimento da denúncia, “porque são questões intimamente vinculadas ao mérito, ao elemento objetivo da pretensão acusatória, e dizem respeito a interesse da defesa”.[9]
Ainda que com relutância e longe de pacificar esse entendimento, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo vem reafirmando, julgado após julgado, que “pela nova sistemática processual o direito à resposta preliminar conferido à Defesa, nos termos do art. 396-A, do CPP, exige do julgador uma apreciação fundamentada das preliminares e matérias ali argüidas, sob pena de nulidade”.[10]
Fato é que as bases que ainda serviam de sustentação para a não motivação da decisão de recebimento da denúncia ruíram com a previsão legal que possibilita a análise do mérito da causa antes do início da ação penal, conclusão que traz em seu âmago a necessidade dos Tribunais reverem a jurisprudência firmada com base naquelas premissas antigas e já superadas.
Cabe, pois, aos Tribunais analisarem a matéria com os olhos de hoje, especificamente à Suprema Corte, que tem o dever de harmonizar a interpretação e a aplicação da legislação ordinária com os preceitos do texto constitucional.
Notas: [1] O Código de Processo Penal é impreciso com relação ao momento do recebimento da denúncia. No entanto, independentemente de se filiar à corrente que defende o recebimento no momento do art. 396 do CPP ou ser partidário do recebimento nos termos do art. 397 c.c art. 399 do CPP, não resta dúvida que é esta segunda decisão (neste trabalho também chamada de recebimento da denúncia) que precisará ser fundamentada, pois é verdadeiramente neste momento que o magistrado deverá se pronunciar sobre a aptidão da denúncia e as teses defensivas. [2] Rel. Min. Cezar Peluso, DJe 25.03.2010. [3] Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 26.08.2010. [4] RE 74.297/RJ, j. 21.11.1973, DJ 29.03.1974. [5] Filho, Antonio Magalhães Gomes. A Motivação das Decisões Penais. São Paulo: RT, 2001, p. 209. [6] Voto vista da Ministra Maria Thereza de Assis Moura no julgamento pela 6ª Turma do STJ do HC 76.319/SC, Rel. Min. Nilson Naves, v.u., j. 11.12.2008, DJ 23.03.2009. No mesmo sentido, em precedente ementado para caso de tráfico: STJ, HC 89.765/SP, 6ª T., Rel. Des. Conv. Jane Silva, j. 19.02.2008, DJe 24.03.2008. [7] STF, 2ª T., HC 84.919/SP, v.u., j. 02.02.2010, DJe 25.03.2010. [8] Badaró, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Rejeição da denúncia ou queixa e absolvição sumária na reforma do Código de Processo Penal: atuação integrada de tais mecanismos na dinâmica procedimental. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais nº 76. São Paulo: RT, jan./fev. 2009, p. 173. [9] Lopes Jr., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 391. [10] HC 990.10.179175-7, 14ª Câmara de Direito Criminal, Rel. Des. Wilson Barreira, j. 01.07.2010, DJe 30.07.2010. No mesmo sentido decidiu o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo nos seguintes casos: HC n. 990.10.019336-8, 14ª Cam. Crim., Rel. Des. Hermann Herschander, j. 13.08.2009,DJe 11.05.2010;HC n. 990.09.123605-5, 14ª Cam. Crim., Rel. Des. Hermann Herschander, j. 13.08.2009, DJe 19.11.2009; HC n. 990.09.156846-5, 8ª Cam. Crim., Rel. Des. Louri Barbeiro, j. 08.10.2009, DJe 10.12.2009; HC n. 990.09.183184-0, 8ª Cam. Crim., Rel. Des. Louri Barbeiro, j. 08.10.2009, DJe 10.12.2009, entre outros.

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