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Um oásis na caverna do Judiciário

  • Foto do escritor: Serra Oliveira Advogados
    Serra Oliveira Advogados
  • 4 de mai. de 2015
  • 4 min de leitura

Atualizado: 7 de mai. de 2020

Autor: Rafael Serra Oliveira

Data de publicação: Segunda-feira, 4 de maio de 2015



Lembro-me saudosista do meu primeiro ano na faculdade de direito e, como quase todos que por lá passaram, também do estudo – e do júri simulado – do caso dos exploradores de caverna. O conto narra a situação vivida por quatro pessoas que, porque estavam prestes a morrer de fome, soterradas e presas há 20 dias numa caverna, mataram e comeram o quinto elemento do grupo, escolhido entre eles por sorteio. Não é à toa que a história inventada por um professor de Harvard é de leitura quase obrigatória pelos iniciantes na carreira jurídica. O objetivo é desde cedo demonstrar aos alunos que a lei permite soluções diametralmente opostas para um mesmo caso. Seria a hipótese de condenação por homicídio doloso, ou absolvição pelo reconhecimento do estado de necessidade?

Já nesse primeiro contato com um processo, ainda que fictício, o aluno tem que fazer uma escolha que provavelmente o seguirá por toda a sua carreira jurídica: condeno as quatro pessoas e me torno um jurista que julga friamente papéis ou absolvo por analisar as circunstâncias pessoais, extraordinárias e fáticas, sem deixar de aplicar a lei?

Passados onze anos, percebi que o dia a dia forense mina, paulatinamente, os sonhos do aluno que naquele primeiro ano de faculdade absolveu os quatro exploradores de caverna. Entre os juristas, são raros aqueles que julgam analisando as especificidades de um caso. O automatismo das decisões e a aplicação de sanções idênticas para casos completamente diferentes assustam.

Mas, ainda que o sonho daquele primeiro ano esteja, como os exploradores de caverna, soterrado e preso dentro de um sistema judiciário irracional, ele continua vivo e se alimentando de juízes julgadores de homens e de almas. E foram dois desses juízes que, na última quarta-feira, reacenderam meu antigo sonho de faculdade.

Na manhã do dia 29 de abril, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo levou a julgamento a apelação de um rapaz simples, filho da empregada de um amigo dos tempos da faculdade que, assim como eu, também leu o caso dos exploradores de caverna. O caso tratava de um roubo qualificado praticado em 2012, pelo qual o acusado havia sido condenado em primeira instância a 6 anos e 8 meses de prisão, a ser cumprido inicialmente em regime fechado.

Até mesmo a acusação entendeu descabida e desproporcional a pena aplicada. O Ministério Público pugnava por pena mais branda e pelo seu cumprimento no regime semi-aberto. Mesmo sem estar presente no julgamento de primeira instância – assumi o caso no Tribunal –, não tenho o menor receio em dizer que o meu cliente foi julgado por um justiceiro, não por um juiz. Não há outra razão para a pena a ele imposta.

Antes e depois deste evento – pelo qual ficou preso cautelarmente por três meses –, ele não se envolveu em nenhum outro fato criminoso. Se é que praticou o crime, este foi um fato isolado. De lá pra cá, passados três anos, ele reconstruiu sua vida: constituiu família, tem um filho de 1 ano e 2 meses e trabalho fixo.

Nesse cenário, a prisão dessa pessoa somente traria malefícios. A aplicação do regime fechado (estabelecido em sentença de primeiro grau) ou do semi-aberto (pugnado pelo Ministério Público) afastaria o rapaz de sua família, faria com que perdesse o emprego e o colocaria em contato direto, ao longo de anos, com membros de facções criminosas que comandam os presídios brasileiros. Com a sua inevitável soltura em alguns anos, ele dificilmente conseguiria emprego (ninguém contrata ex-presidiário, pelo contrário, pede-se atestado de antecedentes) e, possivelmente, sua família estaria completamente desestruturada (são corriqueiras as separações de casais em decorrência da prisão).

Ou seja, a pessoa socializada, com mulher, filho e emprego lícito, que existia antes da prisão, teria desaparecido e dado lugar a outra, provavelmente um criminoso. Sem outro caminho, adotaria o crime como meio de sustento e alguma facção criminosa como sua nova família, mantendo, assim, o preocupante índice de 69% de reincidência do sistema penal brasileiro.

E foi aí que entraram em cena os julgadores de homens e de almas de uma das câmaras criminais do Tribunal de Justiça de São Paulo. Reconhecendo o contexto acima descrito e as excepcionalidades fáticas do caso concreto, não só abaixaram a pena para 5 anos e 4 meses, como, desvinculando-se do automatismo judiciário que aplica sempre o regime semi-aberto para as penas entre 4 e 8 anos, deram real sentido ao termo “poderá” do artigo 33, § 2º, al. “b” e “c”, do Código Penal, e consideraram as circunstâncias pessoais do agente para fixação do regime prisional, como prevê o § 3º do mesmo artigo, para determinar o cumprimento da pena inicialmente aberto.

A sensibilidade desses magistrados foi excepcional, são vocacionados, não há outra definição. Preocupam-se, simultaneamente, em aplicar a lei e com o reflexo de suas decisões. Excelentes juízes que são, sabem que, no caso narrado, qualquer deslize praticado pelo condenado ao longo dos próximos 5 anos e 4 meses de cumprimento da pena resultará na regressão do regime para o semi-aberto e, se o caso, posteriormente para o fechado.

Num período em que vigora um punitivismo exacerbado, tive a honra de encontrar, ainda que por uma manhã, um oásis dentro de um sistema penal em crise. O judiciário está, como os exploradores, soterrado numa caverna, e, para se curar, precisa cada vez mais de médicos togados que se preocupem com homens e almas.

 
 
 

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